Luta dos deficientes físicos na universidade é contra o preconceito e a falta de acessibilidade física e comunicacional. Personagens também contam como sofreram no ensino superior e como conseguiram ter sucesso diante de tantos problemas
Ver as cores da natureza não é possível para Francisco Lima, de 48 anos. Nasceu cego, em São Paulo, e teve que desde cedo aprender a conviver com as dificuldades passadas por quem é deficiente. Mas, Francisco começou a enxergar o mundo de outra forma, ainda criança. A educação escolar já era vista por ele como uma ferramenta de desenvolvimento social e intelectual. Apoiado pela sua família, ele seguiu a vida e sempre buscou nas salas de aula uma maneira de aprender como os outros alunos ditos normais aprendiam, sem exclusão e desigualdade. Francisco cresceu. Em 1983, com 17 anos, após ter finalizado o ensino médio e um curso de interpretação, foi aprovado em tradução de inglês na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Foi lá que o hoje professor de educação inclusiva iniciou uma luta pelo direito dele e de outras pessoas.
"Eu era oriundo de uma família pobre e com pouca informação acadêmica. Eu tinha dinheiro apenas para uma faculdade - ele também foi aprovado em outra instituição de ensino - e acabei optando pela PUC. Solicitei uma bolsa e fui informado que eu precisava ter um político influente. Neste momento, eu descubro uma emenda constitucional que garantia o ensino superior gratuito para deficientes de qualquer nível", conta Francisco. Desde então, Francisco tomou posse de um lema que diz "Direito não se pede. Exige-se". "Pediram para eu retirar uma ação da Justiça e só assim ganharia a bolsa. Não aceitei, porque comecei a entender que deveria lutar por outras pessoas", relata.
Em 1989, Francisco viajou para os Estados Unidos e começou a compreender a fundo como se trabalhava a educação para deficientes. Chegou à conclusão que era necessário romper com a ideia de educação especial e enfatizou a importância da educação inclusiva. "Não é apenas partilhar o espaço físico. Só há inclusão quando existe transformação. É importante ter interação entre todos", explica. Francisco voltou ao Brasil em 1991 e começou a cursar psicologia em uma universidade de São Paulo. É nesse momento que ele começa a enxergar outra realidade: o ensino superior para deficientes. "Naquela época, eu fui o primeiro e único estudante cego da universidade. Passei por resistência e briga com professores", conta.
De acordo com Francisco, a recepção dos amigos de curso foi bem feita e não aconteceram atos preconceituosos. Porém, na contramão do que um educador deve fazer, a discriminação contra ele, pelo fato de ser cego, partiu de um professor. "Na segunda semana de aulas, uma aluna de outro curso me chamou para pedir umas informações. Saí da sala e quando voltei o professor disse: 'Não estou aqui para ensinar aluno com deficiência. Se ele não conseguir acompanhar o problema é dele", descreve. Apesar desse e de outros embates, ele superou as barreiras e conseguiu se formar.
Depois de muito esforço e de uma formação acadêmica de qualidade, Francisco conseguiu ser aprovado em 2002 no concurso público da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para o cargo de professor da disciplina de educação inclusiva. O docente já coordenou um setor dedicado a esse segmento da educação, além de ser mestre e doutor em psicofísica. De acordo com ele, além do combate ao preconceito, algumas ações precisam ser feitas para garantir uma educação inclusiva de qualidade para os universitários com deficiência. Segundo o docente, as instituições de ensino devem atentar para a acessibilidade física e comunicacional. "É extremamente importante também cumprir as leis básicas que garantem os direitos dos deficientes físicos; respeitar o Decreto 6949, de 2009; e principalmente realizar um trabalho de formação dos professores; Nós docentes precisamos muito entender como trabalhar a educação inclusiva. Ainda há muito a ser feito", conclui o professor.
A história de Francisco reflete uma pequena fração das situações que deficientes físicos passam no ensino superior. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), existem 27.152 universitários com deficiência. Desse total, 8.128 estão em universidades públicas. Ainda segundo o Inep, a maioria (6.667) é deficiente visual, 6.123 estudantes têm problemas auditivos e 5.472 têm deficiência física.
Por região, o Sudeste brasileiro tem 11.892 universitários deficientes. Em seguida, aparece o Sul do País com 6.123 e logo depois vem o Nordeste com 4.752. O Centro-Oeste possui 3.120 universitários com deficiência e o Norte do Brasil tem apenas 1.256 alunos.
De acordo com o Ministério da Educação (MEC), as instituições de ensino são orientadas a assegurar aos estudantes com deficiência o pleno acesso a todas as atividades acadêmicas, com base em "marcos legais, políticos e pedagógicos". Entre esses marcos, há o da Constituição Federal/1988, artigo 205, que garante a educação como um direito de todos. Confira AQUI as normas.
"Para uma pessoa com deficiência ser considerada boa no mercado de trabalho, é preciso ser duas vezes melhor". É assim que pensa o professor Francisco Lima sobre a saída do deficiente físico da universidade para ingresso no mercado de trabalho. Quem também compartilha dessa ideia é a especialista em psicologia organizacional e gestão de pessoas, Sonaly Frazão (foto). De acordo com Sonaly, que também é pedagoga, ter uma boa formação é imprescindível para os deficientes que galgam emprego. "Falta mão de obra qualificada para deficientes. Sobram vagas no mercado", diz.
Segundo a especialista, os cegos são os que mais ocupam vagas no mercado de trabalho. Em seguida, aparecem as deficiências mental e auditiva. Mesmo como uma realidade diferente de tempos passados, Sonaly acredita que ainda existe muito preconceito contra os deficientes, partindo principalmente dos próprios patrões. "Historicamente, os povos antigos sacrificavam as crianças que nasciam com alguma deficiência. Isso e outros fatos refletem na sociedade atual. O preconceito parte muitas vezes dos empresários. Alguns não reconhecem a capacidade dos deficientes de desempenhar as funções e geralmente os deficientes são destinados às vagas operacionais, com salários mais baixos", explica.
Dados recentes da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, mostram que mais de 325 mil deficientes físicos estão trabalhando. Desse total, mais ou menos 49% têm ensino superior, 13% têm especialização e somente 1% possui mestrado. Ainda segundo a Rais, os deficientes ganham em média R$ 1.891, 16.
Se para ter destaque no mercado o universitário deficiente ou profissional deve ter uma boa formação acadêmica e de extensão, Silvana Vasconcelos, 21, seguiu a risca essa orientação. Com mielomeningocele - defeito que atinge a coluna e causa dificuldade de locomoção - , a jovem natural de Vitória de Santo Antão, no interior de Pernambuco, não caiu diante das dificuldades e depositou nos estudos suas "fichas". Silvana estuda biomedicina em uma instituição de ensino privada na capital pernambucana, está empregada e tem projetos para o futuro. "Sempre gostei da área de genética e por isso optei por biomedicina.
"Não tenho o que reclamar dos meus professores e dos meus amigos. Todos eles são maravilhosos. Hoje, trabalho com marketing, mas, penso futuramente em trabalhar com genética", conta a jovem."
Suely Rodrigues Guimarães - que não quis revelar a idade -, natural de São José do Belmonte, interior pernambucano, aos sete anos foi atropelada por um carro e teve que amputar as pernas. Após a cirurgia, quando voltou à escola, se deparou com uma nova realidade, uma vez que não podia mais correr e brincar como as amigas de sala. Suely lutou, contando com muito apoio familiar, e venceu nos estudos. Passou pela universidade, se formou em jornalismo e relações públicas em 1981 e atualmente ingressou no curso de educação física. É nessa área que ela se realiza, principalmente quando o foco é esporte. Suely tem vários títulos no esporte paraolímpico - iniciou em 1981 - nas modalidades de arremesso de peso, lançamento de disco e dardo.
Humberto Suassuna, de 31 anos, tem Síndrome de Down e também deixou de lado uma formação de má qualidade. Queria cursar medicina, porém, por um pedido do avô que é médico, decidiu ingressar na educação física. Formado em 2009 pela UNINASSAU - Centro Universitário Maurício de Nassau, Suassuna atualmente está empregado e auxilia nas atividades esportivas desenvolvidas na instituição de ensino. Ele e Suely são exemplos de luta pelo direito à educação superior e pela formação de qualidade dos deficientes.
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